Friday, January 23, 2009

Fábrica de Zés Povinho tem guia de encerramento? (Texto da pág. nº2/3 do Bronkit)

Por: Osvaldo Macedo de Sousa
(Sobre o encerramento da Fábrica Bordallo Pinheiro nas Caldas da Rainha)
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- Queres fiado?!! Toma!!!
Pois é, são tempos de crise e tudo porque fiamos no sistema. Nunca se viu tanta gente a comprar sob fiado. Já não sabem o que é isso? Em português vernáculo é sem vergonha, é andar a crédito, quando os créditos da economia e da política andam pelas ruas da amargura. O resultado é que nem os credores pagam, nem os trabalhadores almoçam. Fábrica a fábrica, vão fechando a porta, um pouco por todo o país e o último que apague a luz…
De todos esses pequenos dramas fabris, o que provocou estas palavras foi a notícia sobre o possível encerramento da Fábrica dos Zés Povinho nas Caldas da Rainha, ou seja as Faianças Artísticas Bordalo Pinheiro Ldª, a primeira e pelos vista a última de cerâmica nesta cidade termal. Esta Fábrica é a real herdeira da empresa criada, em 1884, pelo ilustre artista Raphael Bordallo Pinheiro e a que continua a produzir as peças com os moldes originais criados pelo genial Raphael e pelo não menos genial Manuel Gustavo Bordallo Pinheiro, filho do Mestre.
Para além das faianças para uso doméstico, os Bordallos exploraram as faianças decorativas, seja recuperando motivos antigos, como moçares, e quinhentistas, como também desenvolveram um imaginário naturalista zoomórfico, leguminoso… para além de sátiras caricaturais em que os principais logotipos sociais e políticos estão “embalsamados” no barro. Aqui, surge o incontornável Zé-povinho em múltiplas atitudes, seja no eterno sim, seja no manguito, passando pela gamela, caixa oca, apito…
Como ele é a figura mais importante, o rei do jet-7 bordaliano, resolvemos pedir-lhe breves palavras sobre este calamitoso encerramento:
- Caro Zé, o que pensa destes factos?
- Na verdade... Não penso, logo não existo!!!!
- Como não existe?
- Vê!!! Não duvidou do pressuposto de “Não Penso”! Isso é o que todos dizem, que sou um pau mandado…
- Desculpe, sei muito bem que existe, porque o vejo a votar, a eleger os políticos, a trabalhar desalmadamente para que os gestores brilhem…
- Continua a não abordar a questão de eu pensar. Acha que o meu voto é inconsciente… Quando nos davam carneiro com batatas e bom tintol à boca das urnas, diziam que só íamos lá para encher o bandulho. Agora que nem isso dão, qual a desculpa para irmos votar nesses espécimes??? Tem razão, se calhar não penso….
- Peço desculpa, mas comecei por lhe perguntar precisamente: O QUE PENSA sobre o encerramento da Fábrica. Se os Governos têm capacidade de nacionalizar bancos, para salvar os bolsos de banqueiros, de salvar a face de gestores, de salvaguardar a riqueza dos milionários, não seria natural nacionalizar a sua fábrica, e transformá-la num ícone de turismo, criatividade e irreverência do design nacional, um património nacional protegido?
- E pergunta-me isso a mim? Isso seria pedir demasiado aos políticos. A mim retratam-me de gamela à frente, sempre a dormitar, mas quem não vê mais longe do que a gamela são os políticos. Já agora aproveito esta oportunidade para dizer a esse Sr. Raphael e a todos os outros que me desenham constantemente com este ar saloio, que me definem como apático, submisso, indiferente, resmungão… É certo! Parece que deixamos tudo na mão dos senhores do poder, mas estão muito enganados comigo. Portugal tem oitocentos anos de evolução, de progresso, e não creio que quem fez esse trabalho tenham sido os políticos, os gestores de cartão de crédito livre, mas sim o meu trabalho duro, suado. Podia ser melhor, se me deixassem. Portugal é hoje o que é, apesar da existência destes indivíduos que não se podem intitular Zé-povinho, nem sequer Povo, porque melhor se incluem na raça do Polvo. Apesar de termos de sofrer com esses senhores da política e das gestões, Portugal é o que é mercê da minha solidariedade, com a minha insolência, com a minha arte de desenrascar e de carolice. Toma!!!!
- Também não é necessário ser mal-educado, com esse manguito quase me batia na cara…
- Desculpe, não queria atingi-lo, mas não é má educação, é um gesto de revolta satírica. Foi um gesto que me ficou como tique desde o Sr. Raphael. Mas foi este gesto que me celebrizou entre o povo, o que levou a muitos outros barristas a falsificarem a minha imagem e venderem ao desbarato para tascas e casa populares. Um gesto condenável, mas que eu desculpo pelo alcance social; e só desejo que essa maldita ASAE, que está a estragar o país com o seu assepticismo, não venha perseguir os meus fãs. Em relação à Fábrica… São tantas as fábricas a fecharem por esse país fora… Acha que os políticos e gerentes desta feitoria à beira mar instalada se devem preocupar com questões culturais? Se eu fosse uma peça de arte contemporânea, certamente que já estaria a salvo, pois é moda todas as autarquias e instituições públicas criarem o seu Centro de Arte Contemporânea… Salvarem-me, seria um acto original, irreverente, e hoje em dia ninguém quer isso. Eu não sou politicamente correcto. Salvar o meu espaço de criação, seria salvar 20 postos de trabalho? E os outros duzentos das faianças e louça comum? E todas as outras cerâmicas que fecharam também nas Caldas??? Não sei, não. Isso não seria uma medida política? Eu sempre me dei mal com as políticas…
- Mas, se não houver uma intervenção do poder, os seus moldes e de seus irmãos, nascidos das mãos do mestre vão cair na posse de agiotas privados, mais interessados nas questões de valor económico, que no valor cultural.
- Os políticos passam, os cães ladram, abocanham-me a carne, mas continuo aqui. Sou um sobrevivente. Se vocês quiserem fazer algo, acho bem, mas não me peçam a mim para ser eu a fazer tudo. Antes de o Mestre Raphael me ter desenhado em 1875, com este aspecto, já o Mestre Nogueira da Silva me tinha apresentado em 1856 sob o lema: “O Estado Sou EU”. Se calhar o estado destas coisas, é mesmo culpa minha…

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